Manel Cruz. “Apesar de a minha vida ter sido o palco, foi ele que me escolheu, não fui eu”

Manel Cruz. “Apesar de a minha vida ter sido o palco, foi ele que me escolheu, não fui eu”


O músico leva ao NOS Primavera Sound, no sábado, “Estação de Serviço”. O festival começa amanhã.


Descrito como um concerto atípico no seu trajecto, o mais recente espectáculo de Manel Cruz propõe uma viagem que vai de músicas dos vários projectos em que esteve envolvido a outras nunca editadas. Juntando passado, presente e uma possível visão de futuro, Manel Cruz explica o momento que atravessa na sua criação artística. Olhando para trás e para a frente, uma coisa parece certa: é altura para deixar as músicas existirem, em várias formas e contextos, sem a urgência de um disco. Urgente mesmo para Manel Cruz é criar.

Sem banda fixa, sem disco fixo, em que pé é que estamos?

Por norma, editei sempre trabalhos, fiz discos e desses discos resultavam espectáculos. Neste momento não tenho nenhum trabalho para editar. Ou seja, fiz músicas, acabei por estar bastante tempo a fazer coisas, mas sem editar, e queria tocar, não queria estar à espera de sair um trabalho para o fazer. Então pensei numa coisa que servisse esse contexto, o meu contexto agora. Por isso, o espectáculo tem coisas novas e antigas. Achei que poderia ser interessante fazê-lo com as músicas que fiz e em que estive envolvido, músicas de que gosto, e seleccionar as que sobreviveram à minha crítica [risos], misturando-as com as novas e tentando vesti-las com uma roupagem que dá unidade ao espectáculo. Foi assim uma espécie de uma experiência que depois resultou bem, e daí surgiu a ideia de fazer alguns espectáculos.

Como é que o facto de não haver um disco com este alinhamento que vai apresentar influencia o que acontece no palco? Uma coisa vive bem sem a outra?

Não sou propriamente um bicho de palco. Apesar de a minha vida ter sido o palco, sinto que foi ele que me escolheu e não eu que escolhi. Gosto muito do laboratório, de estar com os amigos a fazer músicas, da parte da criação. Para mim é a melhor parte, a mais livre. Volta e meia tenho saudades de tocar, mas não é uma vontade constante. Também por uma questão de prioridades, tenho sempre vontade de fazer mais coisas e tocar acaba por me tirar algum desse tempo. Faz parte da minha vida profissional e a maior solicitação que tenho é dar concertos. Acabo por juntar um bocado o útil ao agradável, porque gosto dessa vertente, mas também porque tenho de ganhar dinheiro e viver, como toda a gente [risos].

Neste momento, o que está a fazer além da música?

Sempre fiz desenho, pinto. Depois gosto muito de escrever também, de fazer videozinhos. São coisas, à partida, mais para mim, daí haver algumas que não edito. Depois há trabalhos que vendo ou coisas que faço de encomenda para aqui e para acolá.

Numa entrevista ao i, há uns anos, dizia que ouvia mais música desde que foi pai, que quando punha um disco para ouvir se tornava uma espécie de DJ doméstico. A família é o primeiro público do seu trabalho?

Não, não tenho esse hábito. Tenho sempre algum receio de massacrar as pessoas. Quando era mais miúdo, mostrava muito as minhas coisas e tudo – e sempre tive uma grande predisposição da família para isso –, mas com o tempo comecei a tentar poupá-los um bocado porque é um processo demorado. E também estar a mostrar muitas vezes é contraproducente, principalmente se a pessoa for muito influenciável, porque não se dá tempo para as coisas maturarem e, muitas vezes, as pessoas não vão perceber no que aquilo pode tornar-se. Estás a mostrar uma coisa, mas o que tens na cabeça já é como ela vai ficar.

Pegando na palavra maturação, vai sendo mais fácil perceber quando um projecto já não tem mais nada para dar e que é tempo de ir para outro?

Tal como numa relação, não nos apercebemos logo quando as coisas estão mal, temos tendência a lutar e felizmente que assim é. Vai-se lutando enquanto as coisas valem a pena, mas acho que chega uma altura em que uma pessoa se questiona se o balanço é positivo, se há mais coisas boas ou coisas más. E acho que a arte faz sentido quando existe emoção. Não é muito difícil percebermos quando algo não nos provoca emoção. Além disso, existem pessoas, vários ânimos em confronto que muitas vezes se tocam e produzem uma faísca boa, depois há vezes em que se tocam mas já não a produzem. Por vezes, mudando de projecto refrescam-se uma data de coisas, as pessoas redescobrem-se e volta a haver essa faísca.

Faz esse exercício de olhar para trás ou, quando termina um projecto, este fica no passado e não volta mais?

Tendo a acreditar que aquilo que estou a fazer é completamente diferente do que fiz antes, embora as coisas nunca sejam tão diferentes quanto se imagina. Mas colocando-me nessa posição, isso faz com que consiga dar o máximo que tenho de novo e, sobretudo, de actual – actual em relação a mim. Procuro que haja uma ligação daquilo que faço às coisas que quero dizer e ao que sinto. Gosto de pensar dessa maneira e é bom. É bom romper, é bom mudar. Olhar para trás e não me rever neste momento em várias coisas é salutar. Depois gosto de revisitar coisas para trás, ouvi-las e, com algumas, identificar-me. Passados os anos é que consigo ter o distanciamento e ouvi-las como se não as tivesse sido eu a fazer, porque já lhes perdi as referências emocionais do momento.

Estar a solo acaba por ser a melhor maneira de evitar algum cansaço?

Nunca estive a solo propriamente, porque sempre procurei pessoas para trabalhar, para me envolver, mesmo quando era eu a liderar o trabalho. Nunca me senti a solo. Acho que nessas coisas da criação temos de tentar introduzir a estranheza, a novidade e o confronto. Quando isso não existe, estagna-se.

O ano passado foi apresentado um vídeo com o nome “Ovo”. Isto foi apenas um acontecimento isolado ou é o início de algo mais?

Foi um projecto até ser feito e, a partir daí, passou a ser uma coisa isolada, um happening, digamos assim, editado na net, juntamente com o vídeo. Foi um acontecimento, uma peça, um evento e uma música que foi sendo tocada aqui e ali, porque era pertinente.

Quando os Ornatos Violeta se reuniram para uma última série de concertos, fê–lo em parte por sentir que esse capítulo estava por encerrar?

Não, acho que o capítulo estava encerrado e continua encerrado. Digamos que abrimos um outro capítulo, que é uma festa de celebração do outro capítulo e deste que se abriu, que é a música dos Ornatos nas outras pessoas. Os Ornatos deixaram de ser só nossos e isso afirmou-se de uma maneira muito fixe, que foi esse feedback e essa vontade que as pessoas tinham. Foi muito por causa desse apelo que voltámos. Porque só por nós nunca voltaríamos, não íamos fazer uma festa de celebração sem haver uma vontade do outro lado. Se fosse só por nós, fazíamos um ensaio e celebrávamos sozinhos.

Na mesma entrevista disse que depois de a banda acabar esteve para deixar a música. Tendo começado no desenho, no futuro poderia dedicar-se só a isso?

Não sei, acho que nunca vou parar de fazer coisas, porque isso é muito mais o que eu sou do que um trabalho. É uma maneira de estar no mundo, de pensar e sentir. Para o bem e para o mal, sou muito viciado na criação de coisas e vejo-me a dedicar-me a isso. A música, eu queria que fosse sempre o mais possível uma curtição para mim. E se calhar, com o tempo – não sei como é que vai ser a minha reforma, também já não dou muitos concertos –, acredito que farei uma vida diferente. Não vou andar a dar concertos com 80 anos.

É uma questão em que costuma pensar com o avançar da idade? Ter de andar na estrada mais tempo do que gostaria assusta-o?

Não posso dizer que me assuste, mas que penso, penso. Sei lá, quando tiver 60 ou 70 não sei como é que vai ser a minha reforma, não sei que dinheiro é que vou ter, como é que vão ser essas coisas. Mas também os meus filhos já vão estar grandes, não vou ter a responsabilidade deles, vou estar só eu e, estando só eu, é mais fácil. Se tens dinheiro para isto fazes isto, se tens dinheiro para aquilo fazes aquilo. Sempre com o pensamento positivo de que não vou estar abaixo da sobrevivência e que vou estar minimamente bem. Vou pensando nessas coisas e projectando o mínimo. Neste momento, se calhar tenho mais preocupação porque tenho filhos e não lhes pode faltar nada. A vida artística não é muito segura, mas pouca coisa é.

Já olhou para algumas das suas músicas e pensou que ficava melhor com um desenho do que com uma letra?

Sim, por exemplo quando se pensa numa imagem e se faz uma música ou um filmezinho e a música é suficiente para transmitir aquele sentimento. Às vezes, a imagem é suficiente; outras vezes, a música só serve aquilo ou podia ficar só por ali. Já me aconteceu fazer uma música e pensar num vídeo para ela, mas depois achar que seria contraproducente na medida em que aquela música vai deixar de criar uma imagem, porque esta já vai estar lá. Também me acontece muitas vezes as coisas desdobrarem-se noutras, fazer um poema e depois haver três frases dele que uso para uma letra. O poema continua a existir e contém letra da música. As coisas multiplicam-se, não se anulam.

Voltando ao concerto de sábado, que futuro se pode adivinhar a partir daí?

Eu e o pessoal que está comigo neste concerto estamos a fazer coisas, músicas minhas que rearranjámos e também umas que fizemos juntos – algo de que gosto: as coisas saírem da sala de ensaios feitas por todos. Quanto às minhas músicas, penso continuar a fazê-las, mas não estou com aquela urgência de gravar um disco. Estou a gostar da ideia de as músicas existirem, poderem ser tocadas de muitas maneiras e irem sendo eventualmente gravadas em diferentes contextos e formas, e não existir um suporte. No futuro quero muito fazer coisas, mas sem me comprometer com um suporte mais megalómano. Quero ir largando coisas.